Capoeira - LP - Chantecler - Camafeu de Oxossi - 1980
1.Baba Mixorô; 2.Moriô; 3.Ojo Matin Dolaiê; 4.Afoxé Loni; 5.Alá Filá Lá; 6.Adabaô no Mafê; 7.Ala la la é; 8.Paraná; 9.Quem quiser moça bonita/aidée; 10.Samba do Mar; 11.Adeus Corina; 12.Sou eu Maíta; 13.Vou dizê a meu sinô que a manteiga derramou;
Trabalhamos para a Chantecler nos anos 80 e lembramo-nos das discussões sobre alguns lançamentos na gravadora. Houve nessa década uma tentativa em se constituir um mercado de capoeira, na tentativa de se encontrar um nicho onde se fixar no contexto brasileiro de raiz e este disco foi largamente discutido até quase no final do ano de 1990...
Apesar da edição em 1980 e a reedição em 1989, as gravações parecem ter sido realizadas em outra época, talvez nos anos 60/70. São gravações ao vivo, talvez em local aberto. As primeiras músicas do lado A disco são ijexás, não há a presença de nenhum berimbau, ou de canções relativas à capoeira, são todos cantos de nação. A partir da canção "Paraná", no lado B, são cânticos de capoeira, a maior parte clássicos, conhecidos em qualquer roda. O disco é muito bom, com os temas típicos das composições de capoeira, falando das coisas do santo, da valentia e da força de vontade do escravo...
Solista de berimbau, cantor. Ápio Patrocínio da Conceição, andarilho do Pelourinho, foi um homem de sorte. Tanto no jogo, quanto no amor, daí o nome Camafeu. Ele nasceu no dia 04 de outubro de 1915, no bairro do Gravatá, em Salvador, e se criou no Pelourinho. Filho de Faustino José do Patrocínio e Maria Firmina da Conceição. Seu pai era mestre-pedreiro, descendente de africano. Conviveu com ele até os sete anos. Sua mãe veio de Camamu, era negociante de tabuleiro. Negociava frutas, doces, acarajé, tudo na Baixa dos Sapateiros. Sua mãe teve 16 filhos. Ele, Raimundo e João, cada um de um pai. Como ficou órfão de pai aos sete anos, seu padrasto dava mais atenção ao Raimundo. Não suportando aquilo, resolveu sair de casa. De menino de rua que passou fome e perdeu toda a família, estudou na Escola de Aprendiz de Artífice, trabalhando na fundição, vendeu cordão de sapato (cadarço) na porta do Elevador Lacerda. Dali passou para o passeio do Mercado Modelo como engraxate, além de vender os jornais de modinha nas feiras de Água de Meninos, Dois de Julho e Sete Portas. Saiu de lá para ser marítimo e foi parar na Estiva - Companhia Docas da Bahia até se tornar proprietário da famosa barraca de São Jorge, no velho Mercado Modelo, e de um restaurante de fama internacional.
A música entrou em sua vida desde garoto. Foi criado na roda de samba, tocando
berimbau, ensinando aos turistas como tocar o instrumento. Era um homem de muitas palavras, casos e lendas para contar. Chegou a ser diretor das escolas de samba Só Falta Você, Deixa Pra Lá, Gato Preto, onde aproveitava para cantar seus sambas. No Mercado Modelo ele começou a cantar música de capoeira e ijexá, tocando berimbau e atraindo a clientela. A partir daí começou a fazer sucesso.
Na sua Barraca São Jorge, aberto em riso, cercado de objetos rituais de obis e orobôs, ele ensinava os mistérios da Bahia. Na década de 60, a Universidade Federal da Bahia criou o curso de língua ioruba e Camafeu foi um dos primeiros alunos. Foi convidado para ir à África, representando a Bahia no Primeiro Festival de Arte Negra do Senegal, junto com Pastinha e outras pessoas.
Lá ele cantou em iorubá para Oxum e para Oxóssi. Sobrinho de Mãe Aninha e filho-de-santo de Mãe Senhora, o obá de Xangó do terreiro Axé Opô Afonjá esbanjou alegria. Figura baiana conhecida em todo o Brasil, personagens de muitos livros de Jorge Amado (Tereza Batista, Dona Flor, Tenda dos Milagres, Tieta do Agreste, entre outros) de quem era amigo particular. Seu nome está presente em dezenas de músicas: aquela que diz “Camafeu, cadê Maria de São Pedro”, gravada por Martinho da Vila, outra gravada por Maria Alcina e também o conjunto Os Originais do Samba gravou um samba em sua homenagem.
Tocador de berimbau, batuqueiro, ex-presidente dos Filhos de Gandhi, Camafeu de Oxossi gravou dois discos, um deles Berimbau da Bahia com os cantos de capoeira mais belos, alguns velhos do tempo da escravidão ou da Guerra do Paraguai: “Volta do mundo, ê!/volta do mundo, ah!/ Eu estava lá em casa/sem pensá, sem maginá/e viero me buscá/para ajudar a vencê/a guerra do Paraguá/camarado ê/camaradinho/camarado...”.
Esses cantos estão cheios de lembranças da vida dos escravos: “No tempo em que eu tinha dinheiro, camarado ê, comia na mesa com ioiô, deitava na cama com iaiá... Depois que dinheiro acabou, mulher que chega prá lá, camarado. camaradinho ê....”. Contam da guerra, da escravidão, das lutas dos negros. Outros são improvisados no repente da brincadeira e, repetidos, permanecem e se tornam clássicos: “Bahia, minha Bahia,/Bahia do Salvador,/Quem não conhece capoeira/Não lhe pode dar valor//Todos podem aprender/General e até doutor”.
Com o tempo, a voz rouca não cantava mais, porém se emprestava a histórias e nomes com quem conviveu numa cidade que não existe mais.“No mercado, em meio a seus orixás, aos colares e às figas, queimando o incenso purificador, rindo sua gargalhada, saudando São Jorge e Oxóssi, rei de Ketu, o grande caçador. Camafeu comanda a música, o canto e a dança. Um baiano dos mais autênticos, um dos guardiães da cultura popular. Homem que possui o saber do povo, um desses que preservam o passado e constroem o futuro”, segundo Jorge Amado no livro Bahia de Todos os Santos. E diz mais: “Compositor, mestre solista de berimbau, obá de Xangô, Osi Obá Aresá, filho de Oxóssi, preferido de Senhora, amigo de Menininha e de Olga de Alaketu, o riso cortando o rosto, dono da amizade. Em sua barraca, em prosa sem compromisso, numa conversa largada como só na Bahia ainda existe, sem horário e sem obrigações temáticas, podem ser vistos o pescador, a filha-de-santo, o pintor Carybé, o passista de afoxé, o Governador do Estado, o compositor Caymmi, a turista loira e esnobe, a mulata mais sestrosa e Pierre Verger, carregado de saber e de mistério. A barraca de Camafeu é ponto de reunião, é mesa de debates, é conservatório de música. Na cidade do Salvador a cultura nasce, se forma e se afirma em bem estranhos lugares, como por exemplo, uma barraca do mercado (...) lá se vai Camafeu pelos caminhos da Bahia, invencível com seu santo guerreiro. Vir à Bahia e não ver Camafeu é perder o melhor da viagem. Ele é um obá, um chefe, um mestre”.
Um ritual religioso marcou no dia 27 de março de 1994 o sepultamento de uma das figuras mais conhecidas da Bahia: Apio Patrocínio da Silva, o Camafeu de Oxossi. O enterro foi no Cemitério da Ordem Terceira do São Francisco, e contou com a presença de vários amigos e admiradores daquele que era uma das maiores autoridades do culto afro-brasileiro na Bahia. Camafeu ficou conhecido não só como proprietário de um dos mais famosos restaurantes de comidas típicas da Bahia, localizado no Mercado Modelo, como também pelo posto Obá de Xangô, que ocupava no Terreiro Ilê Axe Opô Afonjá. Era querido pelas principais mães-de-santo da Bahia e amigo de Dorival Caymmi, Jorge Amado e Gilberto Gil. Doente há muito tempo, Camafeu foi vencido por um câncer na garganta e faleceu no Hospital Aristides Maltez, aos 78 anos.
Para ouvir a faixa 11, "Adeus Corina", clique abaixo: