Saturday, January 17, 2009

Trilha e Tradição



Abaixo transcrevemos a matéria que foi publicada pelo Doutorando Jorge Lampa da Unicamp na revista Música ao Vivo:



Veredas da cultura popular brasileira
- por Jorge Lampa

A roda, a rede e a religião

Começo pelo último item e já com o pé na porta para desfazer qualquer possibilidade de mal-entendido. Ou seja: para afirmar que não estou aqui para fazer proselitismo. Ou seja novamente: que não estou aqui para propagar ideais religiosos ou tentar atrair adeptos para esta ou para aquela seita, religião, etc. Meu negócio é arte, é música e a verdade é que elas sempre andaram juntas. Digo, a música (e a arte em geral) e as religiões (também em geral). Se o assunto fosse a música de Bach seria difícil (e improdutivo) separá-la da música sacra da igreja luterana. Ou entender o Padre (olha só!) José Maurício Nunes Garcia sem falar da igreja católica dos brasis colônia e império.

Isto posto, volto a falar da música afro-brasileira ou, mais especificamente, da música das religiões afro-brasileiras. E aí vocês percebam que estou falando de música sacra, em certa medida, como qualquer outra. Até porque, falar em cultura popular sem tocar na questão das crenças é, no mínimo, uma certa hipocrisia. Pensem nas calungas do maracatu, nos caboclos envolvidos em vários “folguedos”, olhem o fascínio do Mário (sabem qual, né?) com o catimbó na Missão e vamos embora. Vamos que o assunto é a cultura musical das religiões.

Começo pelo lançamento recente do cd “Deixa a Gira Girar”, muito interessante, podem ser obtidas algumas informações (inclusive de como adquirir) no endereço:

http://ayomrecords.blogspot.com/search/label/Deixa%20a%20gira%20girar

“Gira” é um termo bastante utilizado na umbanda e significa “1. Cerimônia; 2. Ação mística de um Orixá.”; acepções tiradas do glossário de “Marginália Sagrada”, de Fernando Giobellina Brumana, Editora da Unicamp, 1991, uma referência bastante sólida sobre o assunto, livro de antropólogo. Já o cd é dedicado às “gravações pioneiras da música de terreiro”. Este primeiro volume traz registros do período de 1900 a 1940. Na verdade, é um apanhado, em suas 24 faixas, de uma produção bastante representativa do segmento que traz música de terreiro e canções populares tematizadas nas religiões de orixás e na umbanda.

Aliás, sobre a música desta, cabe uma observação: suas cantigas, seus “pontos cantados”, são muito próximos do que a gente conhece como “canção popular”. Sobre esse tipo de produção a Ayom Records (pra que esse negócio de “records”, né? Tudo bem, talvez para vender lá fora, espero…) tem outro excelente trabalho de registro chamado “Todo mundo quer Umbanda”. Quem ouve os cânticos em português narrando aventuras e desventuras de seus principais personagens entende o que digo, principalmente se a gente toma como termo de comparação outras religiões, com cânticos em iorubá ou outras línguas africanas. Então, fica difícil estabelecer uma clara distinção entre a música de terreiro e o que é música de disco, música popular, etc. E quando falo isso, quero dizer também de como o trânsito ocorre de lá para cá, ou seja, o que é “popular”, no sentido de veiculado pela mídia fonográfica vira de terreiro. Tem um estudo muito bacana sobre esse processo com relação a uma grande diva da música de orixás (e figura importante de nossa MPB), Clara Nunes. É da também antropóloga (esta é da USP) Rachel Bakke, dá pra ler em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872007000200005&lng=en&nrm=iso

E quando digo que “dá pra ler” quero deixar claro que é um texto, embora destinado aos pós e tudo, de uma leitura bastante amigável, livre de ranços acadêmicos.

Lá a gente vê uma trajetória ímpar num momento da indústria do disco e do show – momento talvez embalado pelos afro-sambas de Baden e Vinicius - que teve pontos de toque entre os dois tipos de música, a de estúdio e a de terreiro. Terreiros, bem dito, pois é bom frisar a diversidade desta última que tem sob tal rubrica a música dos candomblé angola, queto, do tambor-de mina maranhense, do surpreendente batuque negro do Rio Grande do Sul, do xangô pernambucano e muitas mais.

Quem quiser ter uma noção de tal diversidade, dê uma olhada no blog do acervo fonográfico da Editora Ayom.

Embora bastante comprometido com - aqui sim - uma visão religiosa bastante enfática e declarada (afinal, trata-se de uma faculdade de teologia), vale para qualquer interessado em conhecer melhor a cultura musical e tem uma compilação e catalogação de um acervo de forma jamais vista até hoje. Trabalho impressionante! Há sempre exemplos de uma faixa em cada disco ou cd comentado e dá para ter uma idéia auditiva do assunto que estamos abordando.

Trabalho de gigante, embora haja alguns textos aqui e lá com que possamos ter algumas divergências, o simples fato de reunir todo esse arquivo de forma organizada já vale muito, principalmente pelo fato de que esse tipo de acervo normalmente é relegado a um plano muito inferior. Vale também, para quem se interessa por esse tipo de música, para a gente “tirar a teima” sobre alguns produtos que a gente às vezes adquire por aí. Explico melhor, quem já se aventurou pelo mundo da música sacra afro-brasileira sabe que as informações nos cd’s que a gente adquire por aí nem sempre são muito precisas e confiáveis. O blog da turma da Ayom Records entra aí como uma referência para a gente conferir e adquirir alguns dados a mais sobre os discos.

Para ir encerrando, gostaria de sugerir uma leitura (igualmente agradável) de um texto que é uma espécie de par perfeito para a escuta do “Deixa a Gira…” - um complemento, na verdade, já que o encarte do cd traz uma série de informações sobre os artistas e as faixas que estão lá registrados, ressalte-se, com um ótimo trabalho de restauração e masterização.

Trata-se do artigo “FOI CONTA PARA TODO CANTO: as religiões afro-brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro”.

http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia34_pp189_235_Amaral_Vagner.pdf

O nome já diz tudo para vocês saberem do que se trata, apenas acrescento que lá vamos ter um mergulho em outros momentos e outros artistas da nossa história e quem quiser ir além nessa escuta pode entrar no site do Instituto Moreira Salles, uma loucura! Essas coisas do arco da velha, de 78 rotações e mais para trás ainda!

http://acervos.ims.uol.com.br/php/index.php?lang=pt

Também para quem quiser ir além na coisa da religiões afro e sua música, tem o site do Núcleo de Antropologia Urbana da Usp:

http://www.n-a-u.org

onde se encontra o artigo “Cantar para subir: um estudo antropológico da música ritual no candomblé paulista”, entre vários outros dessa patota da pesada (bem anos 70 este termo, né?).

Vale a pena dar uma olhada também na página pessoal de um grande pesquisador de candomblé e religiões, que é o Reginaldo Prandi.

http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/

Além de uma série de textos interessantes sobre o tema - disponíveis para download - tem um específico do nosso assunto que é o “ Orixás na Música Popular Brasileira: Diretório de 761 letras da MPB com referências a orixás e outros elementos das religiões afro-brasileiras — Período de 1902 a 2000”. Que baita, hein!

Ah, Prandi também é escritor e tem uns livros para crianças e jovens contando de forma muito bacana mitos dos deuses e deusas africanos que deram base a nossa religiosidade local. Narrativas que não deixam nada a dever aos gregos e nórdicos, etc., quanto ao sabor de aventura e à essência humana.

Bom, chega.

Alguém ainda pode perguntar: e a rede, do título do texto? Cadê?

Olha para cima e vê quanto link! Será que estou querendo sugerir um uso enriquecedor da rede mundial de computadores?

Agora, quanto à rede de dormir, depois de tanto cascudo que a vida dá, ave Caymmi – buda nagô, salve Paulinho da Viola – sidartha congo-angola e me deixa ir no balanço.

E abre a roda, que eu também sou cirandeiro.

Jorge Lampa - Músico que sonha em fazer o violão cantar e tocar a própria voz. Ama de paixão a música brasileira em suas várias vertentes e por isso fez e continua fazendo um bocado de cursos (Graduação em Música Popular, Mestrado em Artes e Doutorado em Música, tudo na UNICAMP). Atualmente, encabeça o projeto “Solo, Solar”, plantando suas
composições em solo fértil e abrindo as janelas para o sol entrar. Apareçam.

www.papolampa.blogspot.com

Friday, January 09, 2009

Zélio de Moraes Recuperado!!




Estamos realizando um trabalho de recuperação de fonogramas muito antigos da Tenda Nossa Senhora da Piedade. Muitos deles nos foram cedidos por Mãe Maria de Minas e Pai Solano, da casa Branca de Oxalá. Outros nos foram cedidos pelo falecido Pai Demétrio de São Paulo. Todos conheceram Zélio de Moraes e dona Zilméa. Era nossa intenção lançar em cd através da Ayom Records este material, mas a direção atual da tenda não concordou. Mas para que nossos irmãos de todo o país possam usufruir deste material, iremos colocar alguns fonogramas recuperados para a apreciação dos mesmos, num resgate de vários pontos que já não são mais entoados em nossos terreiros.


Abaixo, apresentamos duas faixas, do Caboclo Cobra Coral, gravada em um gravador Telefunken no ano de 1914, com o som original da fita em péssimo estado. A seguir, a faixa recuperada. Depois, o ponto do Caboclo das Sete Encruzilhadas, antes e depois de ser recuperada em nossos estúdios. Foi um trabalho difícilimo, levamos cerca de três meses em cada uma das faixas, ajustando as freqüências para que os pontos voltassem a serem ouvidos. A medida em que formos recuperando algumas faixas (são centenas de pontos), iremos colocando aqui no blogue, para audição. Basta clicar no linque aí do lado, em Zélio de Moraes.




Ponto do Caboclo Cobra Coral original, gravado em 1915, cedida por Pai Demétrio:



Ponto do Caboclo Cobra Coral, recuperado:





Ponto do Caboclo das Sete Encruzilhadas original, gravado em 1932, cedida por Pai Demétrio





Ponto do Caboclo das Sete Encruzilhadas recuperado: