Saturday, August 22, 2009

Notas sobre o Ayom - Parte II - A importância da música ritual nos cultos brasileiros


O ritmo é uma das forças fundamentais do universo. Todo ritmo descansa em uma sensação física ou psicofísica e nosso sistema nervoso, quando percebe uma serie regular de sons, espera sua repetição ou sua continuação de modo também regular e tem uma acentuada tendência a influenciar os movimentos do próprio corpo. O ritmo é tão importante que se uma pessoa tenta viver fora do ritmo, a natureza o castiga severamente, muito mais do que as criaturas que vivem sem luz, lembrando das criaturas abissais, muitas completamente cegas, que se utilizam de sonares para entenderem o mundo externo. O ritmo é determinado por uma série de unidades, por quantas de expressão e na linguagem oral, a unidade de expressão pode ser desde um grunhido até uma frase complexa, contendo raciocínios perfeitos.

Assim as unidades rítmicas de expressão podem ser sonoras como um suspiro, verbais como uma palavra ou ideológicas como um conceito. O ritmo da linguagem não só se desenvolve segundo as unidades de expressão fonética, mas compreende ainda, as emotivas e mentais, perfazendo várias unidades de ritmo contidas num mesmo discurso. O canto e a risada, a cólera e a alegria buscam um canal rítmico quando um ser humano trata de comunicar seu sentimento a outro ser humano. O sentido acústico da audição tem por fundamento o sentido muscular do esforço e não funciona senão em relação a este último, ou seja a expressão das emoções, quando é traduzida para elementos sonoros visando a comunicação auditiva, combina-se através do inconsciente com a expressão muscular do movimento e se conectam com o sistema nervoso através das formas rítmicas. E muitas emoções internas do ser humano por não possuírem conexões musculares e não se ligarem diretamente com nenhum pensamento determinado, encontram sua exteriorização na música através do ritmo.

Sons são emissões que são interpretadas segundo os pulsos corporais, somáticos e psíquicos. A música está na intersecção em que diferentes freqüências se combinam e se interpretam porque se interpenetram e o pulso na música se apresenta através dos ritmos somáticos (por exemplo o sanguíneo) e ritmos psíquicos (ondas cerebrais). Ambos operam em diferentes faixas de onda, em frequencias sonoras que se apresentam basicamente em duas grandes dimensões: as durações e as alturas (durações rítmicas e melódico-harmônicas). Daí a orquestra de terreiro influenciar as pessoas psíquica e corporalmente e de acordo com a mensagem dos pontos cantados, excitarem e impressionarem o psiquismo como um carimbo através das letras das cantigas e melodias.



A batida de um tambor é um pulso rítmico. Ele emite frequências perceptíveis como recortes de tempo, onde inscreve suas recorrências e variações. Se estas frequencias forem tocadas por um músico ou um instrumento capaz de acelerá-las na medida de dez ciclos por segundo, há um salto para outro patamar, o da altura melódica. A partir de um certo limiar em torno de quinze ciclos por segundo, estabilizando em cem e disparando ao agudo até a faixa possível de se ouvir de quinze mil hertz, o ritmo vira melodia. Nosso ouvido só percebe sinais discretos, separados (portanto rítmicos) até a barreira aproximada de dez hertz (ciclos por segundo). Entre dez e cerca de quinze hertz o som entra numa faixa difusa e indefinida entre a duração e a altura, que se define depois, através da sensação do som melódico (quando a o período das vibrações nos permite escutar a identidade de um possível dó, mi, lá ou si). É aí que se dá o salto qualitativo, pois muda o parâmetro da escuta. Passamos a ouvir todas as variantes que vão do grave ao agudo, o campo das tessituras – assim é chamado o espectro das alturas. E é aqui, nesse campo, que há o enlace corporal e assim, o som grave tende a ser associado ao peso da matéria, com vibrações mais lentas e pesadas, em oposição à leveza e velocidade da sensação do agudo...

E é assim que se processa, dentro de um rito de Umbanda (seja ligado às nações, encantarias, ou mesmo a rituais onde não há o uso de atabaques), as tensões necessárias ao êxtase e instase ritual, pois o clímax é atingido pelo inconsciente que se liga à descrição ritual e se abre às possibilidades de conexão com as consciências de outras esferas. O ritmo está presente no canto (nos terreiros que só cantam) nas palmas, nos instrumentos de percussão e mesmo nas orações e em sua estrutura poética e sua construção invocativa e evocativa.

E é pela relação do som grave com o corpo, que o atabaque RUM, o maior dos três (Os outros são o Rumpi, médio e o Lê, pequeno - nomenclatura Gêge) – induz ao transe mediúnico ou anímico, independentemente do culto que se exerça.

Encerrando, diremos que a música e os pontos cantados são o único elo existente entre todos os templos do Brasil e do mundo (pensemos, por exemplo, nas Américas... os cultos cubanos, por exemplo, de Palo Monte, Arará e Regla de Ocha são muitíssimo similares aos nossos). Nada mais fala tão forte pela unidade ritualística e pela origem comum de todos os terreiros e é a música que abre as portas de conexão com os mundos hiperlativos.

Daí nossa preocupação com os ditos festivais de curimba. É preciso saber que há uma grande diferença entre o que é sagrado e profano, entre ritualizar dentro dos templos com parcimônia, seriedade e consciência de que invocamos potestades sutilíssimas, puras e sumamente poderosas e de que estamos lidando com o inconsciente e com a saúde física, emocional, mental e espiritual de quem acorre a nossos templos ou de levarmos à clubes, estádios e praças a nossa música e toques, simulando contatos mediúnicos em ambientes inadequados e objetivarmos as disputas, vaidades e concorrência em nome do espiritual.

A escolha entre essas duas opções mostra muito bem o estado espiritual de quem o faz. Pois como diz a lenda do Ayom:

Xangô não perdoa quem profana o tambor.

Ayan Irê Ö!!

Obashanan


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