O Acervo do Templo da Estrela Verde foi criado como resgate das tradições musicais dos templos brasileiros,conhecidos como Umbandas,Encantarias e Nações. Inclui a recuperação de fonogramas antigos, que são salvos em arquivos digitais e o registro de todo tipo de manifestação musical desta origem. Aqui postamos comentários e exemplos dos discos já catalogados. Contatos: obashanan2@yahoo.com.br
Afrique Vol. 1 - Collection du musée de l'homme - VOGUE - LP - 1952
01.Acclamation des femmes; 02.Acclamations des femmes & Tambour Ogbon; 03.Chants des Mariwo; 04.Choeurs et tambours Ogbon; 04.Discours du Revenant et Choeurs des Mariwo; 05.Iwi Engungun; 06.Souhaits des revenants;
Em 1952, Pierre Verger, o famoso Babalawô, fotógrafo e ethnologista, realizou algumas das mais famosas fotos dos Eguns em terra, pois fotografar os Eguns é proibido. Egun é uma máscara, um ancestral divinizado que volta à terra através de rituais onde são invocadas as forças essenciais do morto para que sua força animal preencha as roupas sagradas de que le se serve para atuar novamente no mundo. Pierre Verger realizou este trabalho em parceria com Gilbert Rouget, o grande Etnomusicologista que trabalhou durante um longo período em Benim.
Este disco é raríssimo. Tão raro que até dói o osso ilíaco!! Existem apenas umas 50 cópias dele no mundo inteiro (se é que ainda existem, pois a gravadora o lançou apenas por causa do trabalho de Verger, mas não acreditava que o produto fosse vender), o que leva os colecionadores a se estapearem quando descobrem algumas delas. Eu mesmo dei umas bofetadas em uns três prá conseguir esse. As gravações foram feitas em um gravador de rolo, em condições absolutamente livres de qualquer acústica, no ambiente natural do templo do Benin.
Há o ritmo maravilhoso do tambor Ogbon, os tambores dos Alabês/Babalawôs da sociedade Oshogboni e o os cânticos de invocação das mulheres e dos homens e o cântico de Mariwô, a palha sagrada de Xapanã e Ogum, os senhores da morte, simbolizando a cortina disposta no chão, na forma de esteira, que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos.
E, finalmente, a última faixa, Souhaits des revenants, onde podemos ouvir a raríssima voz do próprio Egun em terra, organizando a comunidade com seus conselhos e orientações.
Para ouvir a faixa "Souhait des Revenants", a voz do Egun, clique abaixo:
Só para ilustrar, um culto a Baba Egun na África, do "Povo "Zangbeto" os Guardiões da Noite, um Culto Ancestral, patriarcal beninense.
Aqui, um emocionante registro de um Baba Egun, filmado em Lauro de Freitas/Bahia no Ase Opo Aganju, onde o Bàbálàwòrìsà é Obaray (Balbino Daniel de Paula), filho de Alapini Pedro... reparem na alegria do pessoal ao receber seu ancestral, por sinal muito simpático e amoroso!!!
O ritmo é uma das forças fundamentais do universo. Todo ritmo descansa em uma sensação física ou psicofísica e nosso sistema nervoso, quando percebe uma serie regular de sons, espera sua repetição ou sua continuação de modo também regular e tem uma acentuada tendência a influenciar os movimentos do próprio corpo. O ritmo é tão importante que se uma pessoa tenta viver fora do ritmo, a natureza o castiga severamente, muito mais do que as criaturas que vivem sem luz, lembrando das criaturas abissais, muitas completamente cegas, que se utilizam de sonares para entenderem o mundo externo. O ritmo é determinado por uma série de unidades, por quantas de expressão e na linguagem oral, a unidade de expressão pode ser desde um grunhido até uma frase complexa, contendo raciocínios perfeitos.
Assim as unidades rítmicas de expressão podem ser sonoras como um suspiro, verbais como uma palavra ou ideológicas como um conceito. O ritmo da linguagem não só se desenvolve segundo as unidades de expressão fonética, mas compreende ainda, as emotivas e mentais, perfazendo várias unidades de ritmo contidas num mesmo discurso. O canto e a risada, a cólera e a alegria buscam um canal rítmico quando um ser humano trata de comunicar seu sentimento a outro ser humano. O sentido acústico da audição tem por fundamento o sentido muscular do esforço e não funciona senão em relação a este último, ou seja a expressão das emoções, quando é traduzida para elementos sonoros visando a comunicação auditiva, combina-se através do inconsciente com a expressão muscular do movimento e se conectam com o sistema nervoso através das formas rítmicas. E muitas emoções internas do ser humano por não possuírem conexões musculares e não se ligarem diretamente com nenhum pensamento determinado, encontram sua exteriorização na música através do ritmo.
Sons são emissões que são interpretadas segundo os pulsos corporais, somáticos e psíquicos. A música está na intersecção em que diferentes freqüências se combinam e se interpretam porque se interpenetram e o pulso na música se apresenta através dos ritmos somáticos (por exemplo o sanguíneo) e ritmos psíquicos (ondas cerebrais). Ambos operam em diferentes faixas de onda, em frequencias sonoras que se apresentam basicamente em duas grandes dimensões: as durações e as alturas (durações rítmicas e melódico-harmônicas). Daí a orquestra de terreiro influenciar as pessoas psíquica e corporalmente e de acordo com a mensagem dos pontos cantados, excitarem e impressionarem o psiquismo como um carimbo através das letras das cantigas e melodias.
A batida de um tambor é um pulso rítmico. Ele emite frequências perceptíveis como recortes de tempo, onde inscreve suas recorrências e variações. Se estas frequencias forem tocadas por um músico ou um instrumento capaz de acelerá-las na medida de dez ciclos por segundo, há um salto para outro patamar, o da altura melódica. A partir de um certo limiar em torno de quinze ciclos por segundo, estabilizando em cem e disparando ao agudo até a faixa possível de se ouvir de quinze mil hertz, o ritmo vira melodia. Nosso ouvido só percebe sinais discretos, separados (portanto rítmicos) até a barreira aproximada de dez hertz (ciclos por segundo). Entre dez e cerca de quinze hertz o som entra numa faixa difusa e indefinida entre a duração e a altura, que se define depois, através da sensação do som melódico (quando a o período das vibrações nos permite escutar a identidade de um possível dó, mi, lá ou si). É aí que se dá o salto qualitativo, pois muda o parâmetro da escuta. Passamos a ouvir todas as variantes que vão do grave ao agudo, o campo das tessituras – assim é chamado o espectro das alturas. E é aqui, nesse campo, que há o enlace corporal e assim, o som grave tende a ser associado ao peso da matéria, com vibrações mais lentas e pesadas, em oposição à leveza e velocidade da sensação do agudo...
E é assim que se processa, dentro de um rito de Umbanda (seja ligado às nações, encantarias, ou mesmo a rituais onde não há o uso de atabaques), as tensões necessárias ao êxtase e instase ritual, pois o clímax é atingido pelo inconsciente que se liga à descrição ritual e se abre às possibilidades de conexão com as consciências de outras esferas. O ritmo está presente no canto (nos terreiros que só cantam) nas palmas, nos instrumentos de percussão e mesmo nas orações e em sua estrutura poética e sua construção invocativa e evocativa.
E é pela relação do som grave com o corpo, que o atabaque RUM, o maior dos três (Os outros são o Rumpi, médio e o Lê, pequeno - nomenclatura Gêge) – induz ao transe mediúnico ou anímico, independentemente do culto que se exerça.
Encerrando, diremos que a música e os pontos cantados são o único elo existente entre todos os templos do Brasil e do mundo (pensemos, por exemplo, nas Américas... os cultos cubanos, por exemplo, de Palo Monte, Arará e Regla de Ocha são muitíssimo similares aos nossos). Nada mais fala tão forte pela unidade ritualística e pela origem comum de todos os terreiros e é a música que abre as portas de conexão com os mundos hiperlativos.
Daí nossa preocupação com os ditos festivais de curimba. É preciso saber que há uma grande diferença entre o que é sagrado e profano, entre ritualizar dentro dos templos com parcimônia, seriedade e consciência de que invocamos potestades sutilíssimas, puras e sumamente poderosas e de que estamos lidando com o inconsciente e com a saúde física, emocional, mental e espiritual de quem acorre a nossos templos ou de levarmos à clubes, estádios e praças a nossa música e toques, simulando contatos mediúnicos em ambientes inadequados e objetivarmos as disputas, vaidades e concorrência em nome do espiritual.
A escolha entre essas duas opções mostra muito bem o estado espiritual de quem o faz. Pois como diz a lenda do Ayom:
Zumbi somos nós - CD - Frente 3 de fevereiro - Independente - 2008
01.Quem policia a polícia?; 02-Batuque nagô; 03-Linha de frente; 04-Pare e olhe para a base; 05-Estado de sítio; 06-Eu vou subir ao céu; 07-Reza prá caboclo; 8-Canto para Xangô; 9-Canto para Oxum; 10-Periafricania/Brasileiro 2; 11-Já é hora de lutar; 12-Groove Berlim; 13-Por todas as partes; 14-Vamos prá palmares; 15-Zumbi Requilombo; 16-Diáspora;
A Frente 3 de fevereiro é um grupo transdisciplinar de pesquisa e ação direta que discute o racismo na sociedade brasileira. Sua abordagem cria novas leituras e coloca em contexto dados que chegam à população de maneira fragmentada através dos meios de comunicação. As ações diretas criam novas formas de manifestação sobre as questões raciais. Para pensar e agir em uma realidade em constante transformação, permeada por mudançãs culturais de diversas escalas e sentidos, se fazem necessárias novas estratégias. A frente 3 de fevereiro associa o legado artístico de gerações que pensaram maneiras de interagir com o espaço urbano à histórica luta e resistência da cultura afro-brasileira.
Um disco muito bom, onde o rap, a música de terreiro e outras manifestações da música brasileira se encontram com uma inteligência e propriedade poucas vezes vista. Particularmente esse disco nos é importante pois conta com a participação de um grande músico, nosso grande amigo de Kangoma, o Cássio Martins. Para conhecer mais sobre o projeto, visite:
1-Abertura de Moises Ashaninka; 2-Festa do Piarentsi; 3-Depoimento de Napoleão Ashaninka; 4-Ashowiri; 5-Katari; 6-Owashiriwaita; 7-Kyaroa kyaroa Entatsi Oimi; 8-Imapani Showirentsi; 9-Arotamate; 10-Asunkarite; 11-Nowashiritani; 12-Openpe Mainto; 13-Musicas do Kamrape; 14-Empe No seika enperika nokenai;
Atualmente, encontramos os Ashaninka em território brasileiro no Acre, em Alto Juruá, localizados hoje nas margens dos rios Amônia, Breu, Envira e no igarapé Primavera.
As informações da historiografia regional fornecem poucas indicações sobre a presença desse povo em território brasileiro. O padre francês Tastevin realizou várias viagens ao Alto Juruá nas primeiras décadas do século XX e localizou grupos Ashaninka no pé das colinas de Contamana, nas cabeceiras do rio Juruá-Mirim, afluente da margem esquerda do Alto Juruá. Em seu mapeamento dos grupos indígenas do Acre, baseado em fontes de viajantes e cronistas, Castelo Branco (1950: 8) afirma que eles já perambulavam nessa região no final do século XVII e no início do XVIII.
Distantes dos centros urbanos e dos eixos rodoviários, os Ashaninka não sofreram diretamente e de maneira intensiva os efeitos da expansão com a economia agropecuária que caracterizou a “segunda conquista” do Acre na década de 1970. Se os “paulistas” (nome pelo qual eram qualificados os novos colonos vindo do sul do Brasil) também adquiriram vários seringais na região do Alto Juruá para transformá-los em fazendas destinadas à criação de gado, o rio Amônia ficou relativamente afastado dessa frente de expansão, apesar de suas margens também terem sofrido desmatamentos para esse tipo de economia.
Os Ashaninka referem-se a essa época como um período de penúria e de fome, contrapondo-a à situação de fartura que existia no Alto Amônia quando eles viviam mais isolados dos brancos. Durante a década da madeira, o ritual do piyarentsi era freqüentemente invadido pelos posseiros, acusados de embriagar os índios com cachaça e de abusar sexualmente das mulheres. A música e as danças indígenas eram desprezadas pelos brancos, que levavam seus gravadores e impunham suas preferências musicais.
Entre os Ashaninka, tanto a bebida feita de ayuaska como o ritual são chamados kamarãpi (vômito, vomitar). A cerimônia é sempre realizada à noite e pode se prolongar até de madrugada. Um Ashaninka pode consumir o chá sozinho, em família ou convidar um grupo de amigos, mas, geralmente, as reuniões são constituídas de grupos pequenos (cinco ou seis pessoas). O Kamarãpi se caracteriza pelo respeito e silêncio e contrasta fortemente com a animação festiva do ritual Piyarentsi, uma comemoração. A comunicação entre os participantes é mínima e apenas os cantos, inspirados pela bebida, vêm romper o silêncio da noite. Contrariamente ao Piyarentsi, esses cantos sagrados do Kamarãpi não são acompanhados por nenhum instrumento musical. Eles permitem aos Ashaninka comunicarem-se com os espíritos, agradecerem e homenagearem Pawa.
O Kamarãpi é um legado de Pawa (o Deus supremo, conforme veremos abaixo), que deixou a bebida para que os Ashaninka adquirissem o conhecimento e aprendessem como se deve viver na Terra. As respostas a todas as perguntas dos homens estão acessíveis com o aprendizado xamânico, que é realizado através do consumo regular e repetitivo da bebida, durante anos. A formação do xamã (Sheripiari), no entanto, nunca pode ser considerada como concluída. Se a experiência lhe confere respeito e credibilidade, ele também está sempre aprendendo. É através do Kamarãpi que o Sheripiari realiza suas viagens nos outros mundos e adquire a sabedoria para curar os males e as doenças que afetam a comunidade.
O Piyarentsi, por sua vez, possui uma dimensão mais marcadamente festiva, mas também possui dimensões econômicas, políticas e religiosas. O ritual constitui o principal modo de sociabilidade e de interação social entre os grupos familiares. Nos Piyarentsi discute-se de tudo: casamentos, brigas, caçadas, problemas com os brancos, projetos etc.
Na comunidade Apiwtxa, a organização de um ou vários Piyarentsi ocorre com muita freqüência, geralmente todos os finais de semana. O convite para beber tem o caráter de uma obrigação social e rejeitá-lo é considerado uma ofensa. Após contar com a ajuda do homem para arrancar a mandioca, a mulher é a única responsável pela preparação da bebida. Descascada, lavada e cozida, a mandioca (kaniri) é posta numa grande gamela (intxatonaki), onde é desmanchada com uma pá de madeira (intxapatari). Uma pequena porção é posta na boca e mastigada até adquirir consistência de pasta, momento em que é jogada na gamela. Este processo se repete com toda a mandioca. A gamela é então recoberta por folhas de bananeira e a massa deixada em fermentação de um a três dias. O convite é feito, geralmente, pelo marido, que passa de casa em casa avisando aos outros chefes de família que haverá Piyarentsi.Todos os Ashaninka da aldeia participam da festa, em que bebem grandes quantidades de Piyarentsi. Embriagar-se nessa ocasião é sempre um motivo de orgulho. Os homens demonstram sua resistência física, passando dias e noites bebendo, indo de casa em casa, sem dormir. No auge da embriaguez, os Ashaninka tocam suas músicas, dançam, riem. Afirmam que fazem piyarentsi para homenagear Pawa, que se alegra vendo os seus filhos felizes. Foi durante uma reunião de Piyarentsi que Pawa reuniu seus filhos, embebedou-os e realizou as grandes transformações antes de deixar a Terra e subir ao céu (Mendes 1991: 108).
Em razão da presença dos brancos, a freqüência do Piyarentsi e do Kamarãpi diminuiu; alguns Ashaninka também deixaram de usar a Kushma (roupas lindíssimas de pano longo - uma prova de que nossos índios possuíam a tecnologia do tear. Os próprios Tupi-Guarani usavam essas roupas na época do descobrimento) e passaram a vestir-se como os regionais; a língua nativa era discriminada e muitos homens, constantemente solicitados no corte de madeira ou em outras tarefas a serviço dos brancos, deixaram progressivamente de fazer seu artesanato, de tal forma que certas peças, exclusivamente produzidas por eles, como o arco, as flechas e o chapéu, quase desapareceram.
Além dessa redução da atividade cultural do povo, o período de exploração madeireira é também considerado pelos Ashaninka como o momento de mais doenças e mortes. O contato intensivo com os brancos caracterizou-se pela multiplicação das doenças: gripe, pneumonias, coqueluche, sarampo, hepatite, febre tifóide, cólera...
Entre os Ashaninka, encontramos as características que definem os sistemas cosmológicos xamânicos presentes nas terras baixas da Amazônia: universo dividido em vários níveis; a existência de um mundo invisível por trás do mundo visível, o papel do xamã como mediador entre esses mundos etc. Talvez a particularidade Ashaninka resida na sua concepção extremamente dualista do universo, definindo claramente as fronteiras entre o Bem e o Mal.
Segundo o antropólogo Gerald Weiss, o universo indígena, organizado verticalmente, compreende um número indeterminado de níveis superpostos. Assim, de baixo para cima, encontramos, sucessivamente: Šarinkavéni (o “Inferno”), Kivínti (o primeiro nível subterrâneo), Kamavéni (o mundo terrestre), Menkóri (o mundo das nuvens) e outras camadas que cobrem a terra e compõem o céu (1969: 81-90). O conjunto dos níveis celestes é denominado Henóki, mas esse termo também é utilizado como sinônimo de céu, cuja denominação adequada é Inkite.
De acordo com Weiss, mesmo esses níveis sendo inter-relacionados, os moradores de cada um deles experimentam seu mundo de uma maneira sólida. Assim, por exemplo, se tomamos como referência a nossa Terra (Kamavéni), residência dos homens mortais, o céu visível a partir dela constitui apenas o chão do nível imediatamente superior (Menkóri) cuja maior parte permanece fora da nossa percepção visual. Embaixo de Kamavéni, existem dois níveis: Kivínki (-1), residência de “bons espíritos”, e Šarinkavéni (-2) que, segundo o autor, pode ser qualificado como o “Inferno dos Campa”.
Weiss salienta, no entanto, que o nível -1 é mencionado por poucos Ashaninka, muitos considerando que, abaixo da terra, só existe Šarinkavéni: o mundo dos demônios. A cosmologia Ashaninka complica-se quando Weiss identifica os habitantes das diferentes camadas do universo, procurando explicar o papel desempenhado por cada um deles, suas diversas manifestações e suas relações com os Ashaninka. No céu, ou mais especificamente, em cima (Henóki), vivem os bons espíritos. Essa categoria é chamada de Amacénka e também Ašanínka, ou seja, é tomada como extensão da própria autodenominação do povo. Esses espíritos são hierarquizados conforme o poder que lhes é atribuído e sua importância na cosmologia. Os mais poderosos são denominados Tasórenci e são considerados como verdadeiros deuses. Os Tasórenci têm o poder de transformar tudo através do sopro e formam o panteão Ashaninka que criou e governa o universo. No topo dessa hierarquia está Pává (Pawa), o mais poderoso dos Tasórenci, pai de todas as criaturas do universo. Geralmente invisíveis aos olhos humanos, alguns Tasórenci podem, no entanto, aparecer na Terra revestindo-se de forma humana.
Os espíritos do Mal e os demônios, chamados genericamente Kamári, habitam o nível mais inferior, onde vivem sob a autoridade suprema de Koriošpíri. Mas esses espíritos maléficos não residem apenas em Šarinkavéni. Embora essa primeira camada da hierarquia apresente a maior concentração desses seres e abrigue os mais poderosos entre eles, os espíritos nefastos também se encontram, em vários lugares, no mundo habitado pelos homens. Na “nossa” Terra, o principal demônio é Mankóite, que tem sua moradia nas ribanceiras freqüentemente encontradas ao longo dos rios em território Ashaninka. Ele se caracteriza por uma forma humana, mas geralmente permanece invisível. Um encontro com ele anuncia a morte. É interessante notar que, segundo Weiss, o Mankóite vive de maneira semelhante ao branco: os índios pouco falam sobre esse mundo onde moram pessoas estranhas, algumas com um modo de vida semelhante ao do branco (suas casas têm os mesmos objetos, possuem mercadorias casas, carros etc...) e que conseguem respirar na água. Os Ashaninka afirmaram que nenhum deles vive lá e que não gostam de pensar nesse lugar perigoso porque poderiam acordar os espíritos maléficos e chamá-los para o nosso mundo. Todos eles afirmam, no entanto, que essa camada existe e situa-se “embaixo” (isawiki) da nossa Terra.
O Seripiari (xamã) atua como mediador entre os homens e essas diferentes camadas do cosmos. Com o auxílio do tabaco, da coca e do Kamárampi (Ayahuasca), ele procura comunicar-se com os espíritos bons e combater as forças diabólicas, mas também pode dispor seu poder a serviço do Mal (feitiçaria). Dessa forma, o plano em que vivem os homens não é habitado exclusivamente por seres humanos, animais e plantas. Ele apresenta-se como um mundo em equilíbrio frágil, onde os homens vivem constantemente assediados pelo confronto entre o Bem e o Mal.
Embora esse mundo esteja associado à morte e tenha sido qualificado por alguns como o “Inferno”, ele não é sempre apresentado como tal. Segundo o relato de Shomõtse, atualmente o Ashaninka mais idoso da aldeia Apiwtxa, o “Inferno” não se situaria nesse nível subterrâneo, mas estaria localizado no céu ou, mais exatamente, “em cima” (Henoki), e não “embaixo” (Isawiki). Lá existe um “grande buraco com água fervendo numa grande panela”. O dono desse lugar é Totõtsi, cuja principal tarefa é cozinhar os Ashaninka pecadores. A presença do “Inferno” em cima também se encontra em outros relatos, enquanto alguns informantes acreditam que esse lugar esteja situado debaixo da Terra.
Na mitologia ashaninka, o gênero de Sol e Lua são opostos ao português, sendo o primeiro feminino e o segundo masculino. Segundo Weiss, Pawa teria nascido de uma relação sexual de Lua com uma mulher Ashaninka que morreu queimada ao dar à luz a Sol. Desse modo, Lua é considerado o pai de Pawa e este é pai do Inka, o primeiro povo. Antes de subirem ao céu, durante muito tempo Sol e Lua viveram na terra. Lua ofereceu a mandioca (kaniri) aos Ashaninka que, até aquele momento, só se alimentavam de térmitas. Todavia, apesar de ser o pai de Sol e também considerado como Deus, Lua ocupa um status inferior a Sol em razão de suas atividades que o afastam da vida e o aproximam da morte. Ser canibal, Lua alimenta-se dos mortos e o destino dos Ashaninka é serem devorados por ele.
Essa relação de filiação entre a Lua e o Sol parece um pouco problemática entre os Ashaninka do rio Amônia. Kashiri não é sempre reconhecido como pai de Pawa, na medida em que muitos informantes afirmam, categoricamente, que este sempre existiu e criou tudo, inclusive Lua. Este é visto como um ser ambíguo, ao mesmo tempo considerado como um Deus fornecedor da mandioca (kaniri), mas também associado a um ser canibal que briga periodicamente com Sol (eclipses) e é associado ao mundo dos mortos.
Segundo os Ashaninka do rio Amônia, após a vida na Terra, os mortos (kamikari) vão, num primeiro momento, para o mundo “embaixo” (isawiki), onde permanecem por um tempo. Nas fases de lua nova, Kashiri ingere-os e leva-os para Pitsitsiroyki, onde os entrega a uma estrela. Esta é encarregada de lavá-los, perfumá-los e guardá-los até a visita de Pawa que, periodicamente, vem escolher entre os mortos os Ashaninka que ele reconhece como filhos legítimos e deseja guardar perto de si.
A visão do branco (wirakotxa) aparece com destaque na mitologia nativa. O primeiro wirakotxa de que os Ashaninka do rio Amônia afirmam ter conhecimento é o espanhol que surge de um lago, em decorrência de um ato de desobediência do Inka ao seu pai Pawa, e vem perturbar a ordem do universo.
“Antigamente, o wirakotxa morava dentro de um lago. Aí, Inka foi pescar com outro Ashaninka. Era de madrugada. Aí, escutou galinha no fundo e disse: “Rapaz, vamos pegar isso”. “Não precisa não, fica assim mesmo, não vamos mexer não”. No outro dia, a mesma coisa. De novo, ouviu galinha, ouviu cachorro latir no fundo (...). Aí, Inka foi ver Pawa. “Não mexe não, meu filho”. Mas Inka não escutou e foi mariscar [pescar]. Escutava galinha assim bem pertinho, escutava cachorro. “Vou pegar galinha”. Aí, botou anzol com banana, pedaço assim (...) Aí, saiu galinha. Aí, botou de novo, saiu cachorro. Aí, escutou de novo barulho. Pegou banana e saiu Branco. Aí, wirakotxa subiu na Terra. Aí, Pawa ficou brabo e perguntou: “Por que tu foi buscar wirakotxa?”. “Papai, eu fui pegar galinha e wirakotxa saiu”. “Eu não quero esse branco pra cá junto com nós. Eu deixei ele pra lá mas tu gostou dele, agora pode ficar pra tu! Agora, eu vou embora e tu vai ficar com wirakotxa e trabalhar pra ele” (Seu Alípio, Ashaninka morador do rio Amônia).
O fato de Inka ter pescado a galinha e o cachorro antes do branco é considerado sinal de advertência de Pawa ao seu filho, para que ele interrompesse sua atividade infelizes. Esses animais, trazidos pelo branco, eram desconhecidos dos Ashaninka, que têm um acervo muito variado de mitos para explicar o surgimento da maioria dos animais. Estes eram, inicialmente, Ashaninka que perderam sua aparência humana e foram transformados em animais por Pawa ou pelos Tasorentsi. Todavia, a galinha (txaapa) e o cachorro (otsitsi) nunca foram Ashaninka. Eles surgiram do lago onde eram os fiéis companheiros do branco. Em alguns casos, a comparação com o cachorro foi usada por informantes para qualificar genericamente o branco e/ou seu comportamento: “feio como um cão”, “sovina como cachorro”, “fedorento como cachorro”...
O surgimento do wirakotxa na Terra é portanto o resultado da desobediência do Inka a Pawa, que havia inicialmente separado os Ashaninka dos brancos. Na mitologia indígena, a irresponsabilidade do Inka é mais um exemplo de uma longa lista de erros cometidos pelos filhos de Pawa nos tempos originais. O conjunto desses erros explica a situação atual dos Ashaninka e as imperfeições do seu mundo.
A importância desse evento é reforçada por muitos que consideram que foi em decorrência direta desse ato que o Deus Criador subiu ao céu. Cansado das sucessivas desobediências de seus filhos, Pawa teria decidido deixá-los sozinhos na Terra e morar no céu, onde permanece até hoje, usufruíndo de um mundo perfeito. Outros dizem que Pawa ainda ficou durante um tempo na terra, onde tentou construir um muro para separar os Ashaninka dos brancos. De uma maneira geral, a visão que os Ashaninka do rio Amônia constroem do branco pode assemelhar-se à categoria genérica dos espíritos malévolos, kamari. Como eles, o branco é associado à morte e às doenças (matsiarentsi). Os índios acreditam que as doenças são o resultado desses seres nefastos ou da atividade de um xamã maldoso através da feitiçaria. Frente às perigosas e desconhecidas doenças dos brancos (mãtsiari wirakotxa), a sabedoria do sheripiari é ineficaz.
Interessante notar as pontes que o povo Ashaninka exerce entre as nações indígenas do território brasileiro com as nações do Peru e outros povos, como os Incas (Ashan-INKA) e os Maias, nos levando à conclusão de que os povos amazônicos e os grandes impérios do passado Sul Americano possuíam importante contato e relacionamento. Há relatos de que os Ashaninka tenham resistido à voracidade do império Inca. Daí percebe-se que o deus do inimigo se transforma no novo inimigo branco. Viracocha ou Wiracocha ou Huiracocha (no idioma quechua: Apu Kun Tiqsi Wiraqutra) é a divindade invisível, criadora de toda a cosmovisão andina, era considerado como o esplendor original, o Senhor, Mestre do Mundo, sendo o primeiro deus dos antigos tiahuanacos, que provinham do lago Titicaca, de cujas águas teria surgido, criando então o céu e a terra. É o arquétipo da ordem do universo no homem. Este deus, ou Huaca, aparentemente também está presente na iconografia dos habitantes de Caral e de Chavín, antigas cidades no atual território do Peru.
Em quechua, tiqsi significa "fundamento, base, início"; enquanto que wiraqutra provém da fusão dos vocábulos: wira (gordo) e qutra (que contém água - lago, lagoa). Na simbologia dos antigos andinos, a gordura era um símbolo da energia, e a água o elemento capital do ciclo vital do universo. O Viracotxa dos Ashaninkas é o mal que surge do lago, como vimos.
Finalizando, este é um disco muito importante, tanto pelos fatores da própria história dos Ashaninka que é um povo maravilhoso, e mais ainda pela presença ímpar de seus melodiosos tambores - muitos ainda se esquecem de que nossos índios tocavam e tocam tambor. Sua música evidencia traços muito fortes das origens dos Maracatus e dos Caboclinhos, além dos diversos ritmos de origem norte/nordeste do Brasil, com seu acompanhamento de flautas e canto rimado.
CEGO OLIVEIRA - Rabeca e Cantoria - 1988 - Reedição - CD - 1999 - Cariri Discos
Disco 1 - Lado A - Asa branca; 2-Leva eu Corina; 3-Maria José; 4-Sereno de amor; 5-Morena bota a barca n’água; 6-São José também chorou; Lado B - 1 - Choro da cabritinha; 2-Ai, Lampião, cadê tua muié?; 3-Minha rabequinha; 4-Bendito de N. S, das Dores; 5-A revolta de São Paulo; 6-Despedida de reisado;
Disco 2 - Lado A - 1-Acorda Maria acorda; 2-Lampião; 3-Bendito de N. S. das Candeias; 4-Bendito de N. S. do Socorro; 5-Essas mocinhas de hoje; Lado B - 1-Severina; 2-Águas caririzeiras; 3-Arraiá; 4-Anunciada; 5-Zebelê; 6-Adeus pessoal; No cd é acrescida "Na porta dos Cabarés"
Compositor. Instrumentista. Tocador de rabeca. Cantador. Uma lenda da música brasileira!
Cego Oliveira não era exatamente cego, mas portador da visão subnormal. Ao registrar o mundo ocorriam-lhe alterações oculares que produziam interferências na sua maneira de olhar. Uma outra visão de mundo. Em geral, via mais longe com sua criatividade do que os que olham apenas por suspeita.
Natural do Juazeiro do Norte, no Ceará, em 1929 teve o primeiro contato com a rabeca, ao receber de um tio um desses instrumentos (lembrando que nossa Rabeca pouco tem a ver com o Violino europeu. É, antes, um instrumento de origem árabe/judaica - o Nefer, ou Rebab árabe -, cruzado com as Maracás de nossos índios - Maracás eram o nome dado não só aos chocalhos, mas aos violões e violinos Tupis-Guaranis).
Foi um representante de um estilo musical pouco conhecido e em vias de extinção: o romance. Os romances remontam à Europa medieval, e contam histórias - por vezes bastante longas- em forma de versos com estrofes e rimas intrincadas. Oliveira declarou já ter possuído um repertório de nada menos que 75 "rumances", dentre os quais o famoso "Romance do Pavão Misterioso" e "A verdadeira história de João de Calais".
Tal qual um menestrel Ibérico, percorria praças e feiras desfiando sua cantoria e ponteando sua rabeca a troco de moedas e dinheiro miúdo dos ouvintes, em sua maioria, gente humilde do sertão do Ceará, cuja única diversão era ouvir velhos cantadores.
A popularização do rádio foi aos poucos acabando com o espaço de Oliveira e outros vates da época, que passaram a sobreviver tocando em velórios, batizados ou aniversários. Em 1975, Cego Oliveira foi filmado pela diretora Tânia Quaresma no documentário "Nordeste: Cordel, Repente e Canção" (que vocês podem assistir abaixo). É interessante notar a posição com que toca sua rabeca, apoiada sobre os ombros, e o fraseado simples, utilizando os harmônicos naturais das cordas. Observe também a influência da cantoria de viola, onde o cantador para de tocar o instrumento enquanto canta, fazendo-se acompanhar de marcação rítmica batucada no próprio corpo do instrumento.
Aprendeu a tocar por conta própria e a decorar os versos das cantorias com a ajuda de um irmão quer lia para ele os versos dos romances. Aprendeu a viver duramente como muitos de nossos heróis que insistimos em não ver - cegos as avessas que somos com nossa cultura (só vemos o que desejamos) -, pois estes se apresentam com a roupa rota, com os pés e as mãos calejados e o olhar triste de séculos de opressão e agonia. São uma amostra clara do Brasil que insistimos em negar e esquecer. Enfim, nos envergonhamos do que nos faz ilustres. O seu jeito de cantar e tocar traz a valência de todo o mistério religioso do nordeste, em especial as litanias católicas em paralelo com os lamentos indígenas. Há muito do aboio, de origem árabe, ecos de um oriente furioso, revelando ao mundo moderno o poder da ancestralidade modal e sua voz é o exemplo fustigante das rezas dos verdadeiros encantados, além dos temas onde morte, sofrimento, alegria e amor se combinam nas doses exatas para o deslumbramento.
Há algo que une cantadores do Brasil como Cego Oliveira aos primitivos Bluesmen americanos como Robert Johnson e Blind Lemon Jefferson (este também cego) além do sentimento de "Banzo" (palavra Quibundo significando tristeza que foi relacionada pelos afro-americanos à palavra inglesa "Blues"), mas apesar disso, há um interesse muito maior dos brasileiros pelo Blues americano do que pelos cantadores de nossa terra, quase sempre desprezados e esquecidos. A verdade é que o público brasileiro não sabe lidar com os valores que possui. Se fosse americano, Cego Oliveira seria conhecido e repeitado no mundo inteiro.
O tocador de rabeca morreu em 1977 com 94 anos, pobre e desconhecido.
Para ouvir a impressionante "Na porta dos Cabarés" Clique abaixo:
O igualmente impressionante e único vídeo de Cego Oliveira, finalzinho de "Na porta dos Cabarés":
Lado A: 01. Timolô, Timodê (1 - Walk By Jungle, 2 - Fareua, 3 - Harmatan, 4 - Dandara)
Lado B: 02. Lido´s Square (1 - Pae João, 2 - Menina Da Janela, 3 - OAN, 4 - Madrugada Sem Luar)
Disco raríssimo com apenas duas longas faixas em estilo jam, com quatro temas cada uma. Um misto de soul, ritmos latinos e africanos, com um clima lisérgico tão comum à época.
Parece que a banda tenta repetir a sonoridade de Fela Kuti (importantíssimo músico africano criador do afro-beat) com pitacos de Soul estilo Stax (na verdade lembra muito o disco malucaço do esquecido cantor de soul Miguel de Deus, o igualmente raro "Black Soul Brothers") e macumba brasileira. Um disco mal gravado, improvisadíssimo (com a galera aparentemente muito louca!), a banda parece que nem ensaiou, mandando tudo de primeira, mas é um time de músicos que comparece, principalmente os alabês!
Na verdade tudo que se refere a este disco é um mistério!
Quem tiver maiores informações, por favor, me mande.
Para ouvir excerto da faixa 02 - Lido's Square - Pai João, clique abaixo:
O acervo Ayom foi entrevistado pelo pessoal da + SOMA http://www.maissoma.com/, através do repórter André Maleronka. A + SOMA, atualmente é a maior revista de cultura e arte contemporânea do Brasil. Abaixo, as fotos e a entrevista na revista.
Para ler a entrevista clique abaixo e faça o download em arquivo PDF:
"(...) incomparável é o resgate realizado pelo etnomusicólogo Yan Kaô (Obashanan), pesquisador incansável da música de terreiro brasileira e das suas relações com a música popular".
Umbanda e Candomblé em algum ponto de sua história religiosa se unem, ou pelo menos se encontram ou derivam um do outro, quer seja a Umbanda descendente dos Candomblés Bakongo/Ngola, quer seja o próprio Candomblé Yorubá Urbano, que ressurgiu nas grandes metrópoles a partir do contigente Umbandista em cidades como São Paulo e Curitiba.
Seria tão somente coincidência que palavras como Orixá, Exu, Ogum, Oxossi, rum, lê, Roncó, peji, Zamby, Egun e tantas outras existam tanto em uma tradição quanto em outra? Assim como palavras indígenas - e este é mais um caso a ser discutido - entraram para o mundo social dos terreiros indistintamente, assim também fundamentos africanos foram se espalhando por todos os cultos brasileiros de forma mais ou menos uniforme.
Sabemos que por dentro da Umbanda os nomes se ligam aos fonemas originais da fala cósmica, embora, claro, tudo possa ser discutido à luz das provas factuais tão queridas pela academia. Isso por um lado, pelo lado umbandista, de alguns setores esotéricos. Por outro, pelo lado das Nações Africanas, por mais que se abalize o fim do sincretismo nas novíssimas gerações dos candomblés brasileiros, há que se tomar o cuidado de se repensar cautelosamente 500 anos de história e os porquês dela assim ter acontecido. Mas tal assunto é oportuno para uma outra discussão, em outro texto, pois acreditamos que o ideal para a perfeita relação entre os cultos seja, inicialmente, o encontro das semelhanças rituais, cânticos, danças etc, de tudo aquilo que é compartilhado naturalmente, já que, de uma forma ou de outra, todos pertencem, nas origens, a uma mesma linhagem e família espiritual.
E mesmo que se pense em termos históricos e/ou tempos míticos, onde algumas correntes entendem que a Umbanda é mais nova que os Cultos de Nação e outras acreditam que ela é origem de todas as religiões do mundo, ainda assim, em ambos os conceitos há convergência, há conexão entre saberes muito antigos usados por todos. Partem de uma mesma fonte, ou são rios que se encontram num mesmo mar que só os apegados ao não-diálogo, à diversidade voltada ao ódio e à disputa não conseguem ver. Chegará um dia em que, finalmente, poderemos discutir com felicidade sobre fundamentos católicos, esotéricos, kardecistas, africanos, indígenas e tantos outros que fazem a Umbanda ser tão rica e tão maravilhosamente necessária ao colorido das opiniões diversas mas nunca contrárias em si e nem contraditórias em sua fenomênica e doutrina? Quem sabe?
Mas vamos ao que interessa: até prova em contrário que seja admitida pela ciência (pois ela mesma assim afirma, embora hajam ainda provas incontestes que podem revolucionar este conceito - o da origem humana em solo sul-americano), por volta de 50 mil anos atrás, povos negros deixaram o continente africano, adentrando a Europa, Ásia, e o continente americano modificando seu fenótipo em função dos diferentes ambientes que encontravam. Assim, a pele tornou-se branca pela ausência de sol, os olhos tornaram-se oblíquos pela adaptação a locais de muito vento, etc. No século V a.C, Heródoto afirmava existirem duas “nações etíopes”, uma na África, outra em Sind, região correspondente aos atuais territórios da Índia e do Paquistão.
Marco Pólo escreveu que os indianos representavam suas divindades como negras e os demônios como brancos, afirmando que seus deuses e santos eram pretos. Mais, ainda, em O Livro das Maravilhas, atribuído ao viajante (Porto Alegre, L&PM, 2006, pág.236), lê-se que os habitantes do “reino de Coilum”, atual cidade de Quilon, na província de Querala, eram “todos de raça negra”.
Esses povos indianos teriam sido levados como escravos da África, inicialmente por mercadores árabes e depois pelos portugueses em suas naus, perfazendo uma rota litorânea situada hoje nos atuais Iêmen, Omã, Irã e Paquistão. Cativos e importantes em muitas tarefas, se destacaram como soldados nos exércitos dos chefes muçulmanos, a partir do século XIII. Por volta de 1459, o rei muçulmano de Bengala possuía um exército de 8 mil escravos africanos. Em 1500, foram conquistados pelos portugueses os territórios indianos de Goa, Damão e Diu, o que transformou drasticamente a escravidão na Índia: o desempenho de seus escravos foi relativizado a tarefas menores em seus negócios, casas e fazendas e as mulheres negras passaram a ser mais utilizadas como concubinas ou prostitutas.
Sob o domínio inglês, a maioria foi repatriada para a África e seus descendentes foram deixados em bolsões ao longo da costa ocidental, principalmente nas regiões central e sul (esta tese nos faz pensar: a palavra Umbanda pode tanto ser de origem Bantu como pode ter vindo, realmente, dos povos indianos que retornaram à África). Hoje o país com maior população negróide é a Índia. Hoje, além dos povos afro-indianos que lá chegaram mais recentemente, os drávidas constituem uma das provas incontestes dessa presença, pois estão no continente há milhares de anos, antes mesmo da invasão ariana. Localizados no Sul do país, e contando por volta de 100 milhões de indivíduos, os povos Dravidianos têm pele bem escura e feições africanas, além de costumes, língua e herança cultural que evidenciam laços com as civilizações egípcia, cuxita e etíope (segundo nos diz Nei Lopes em Kitábu: o Livro do Saber e do Espírito Negro-Africanos - Editora: Senac Rio, 2005) .
Construtores de alguns dos mais antigos e misteriosos complexos urbanos da história humana, tais como os de Harappa e Mohenjo-Daro, mais tarde foram reduzidos também à condição de escravos e colocados no mais baixo patamar do sistema de castas instituído pelos arianos. Até 1951, o rei (Nizam) de Haiderabad manteve uma guarda denominada “cavalaria africana”. E essa região (a zona de Siddi Risala de onde provém as fotos que abrem nosso artigo. Veja em http://www.kamat.com/kalranga/people/) conserva, na cultura musical, na dança e no uso de palavras da língua suaíle, fortes traços culturais africanos. Pesquisas recentes descobriram a existência de comunidades afro-indianas em Karnakata, Gujarat e Anhara Pradesh, onde seus membros se autodenominam “africanos” (conforme The African Diaspora in India, 1989).
Mas muitos podem perguntar: o que este texto tem a ver com a introdução? Aqui talvez esteja o paralelo existente entre as “Umbandas Africanistas” e as Nações Africanas dos Candomblés brasileiros, com seus mistérios milenares de 10.000 anos atrás e a “Umbanda Esotérica” de muitos fundamentos indianos, remontando a datas bem anteriores, de períodos míticos e pré-históricos. As origens são as mesmas e as conexões evidentes. Por isso o atabaque, Ifá e Orixá, chacra e reencarnação pertencem tanto a uma corrente quanto à outra em suas questões metafísicas mais profundas. Basta saber olhar.
P.S. – Já ia esquecendo: é claro que não veremos nenhum negro indiano na novela da globo, assim como muitos não querem que a África exista dentro da Umbanda e que a Umbanda tenha raízes com a Índia.